(Foto: Flickr/Jack Lyons)
Calma! Não é para sair por aí comendo bacon como se não houvesse amanhã. Mas há uma notícia boa para quem não está de bem com o exame de sangue. A equipe da pesquisadora Dulcinéia Saes-Parra Abdalla, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da Universidade de São Paulo (USP), estava em busca de uma técnica para identificar uma variação ainda pior do famoso
colesterol ruim (LDL).
Conhecido como LDL-, o mecanismo ativa células defensoras conhecidas como macrófagos, que tentam fagocitá-lo (ou seja, comê-lo) para tirar o colesterol da circulação. Isso impede que ele forme placas de
gordura que, no futuro, irão entupir nossas artérias, causando um infarto do miocárdio ou um AVC. O que há de tão malvado no LDL- é que, engolido, ele destrói o macrófago por dentro. A célula, morta, libera seu conteúdo no sangue. Ou, para citar uma vovó qualquer, “a emenda sai pior que o soneto”.
A equipe de Abdalla criou um
anticorpo capaz de colar no LDL- e tirá-lo de circulação — a para evitar que ele fosse engolido sem querer por um macrófago bem intencionado, tirou a parte que é “detectada” pela célula de defesa. A remoção desse trecho da proteína a tornou mais frágil, diminuindo o tempo que o anticorpo é capaz de passar no sangue. Para protegê-lo, ele foi envolto em uma nanocápsula protetora especial.
Resultado? A dupla nanocápsula e anticorpo reduziu em até 74% o tamanho da placa de gordura que se formava nas paredes das artérias dos ratos, a chamada lesão aterosclerótica. Aguardamos ansiosos a versão humana da técnica. Os resultados foram publicados no periódico European Journal of Pharmaceutics and Biopharmaceutics.
Entenda a técnica
Em nossos vasos sanguíneos há dois tipos de proteínas encarregadas de levar para um passeio a versão microscópica do
bacon que você comeu no final de semana. Uma, mais leve, é responsável por pegar moléculas de colesterol do fígado e do intestino e levá-las para as células que precisam dele em outras partes do corpo. Outra, bem densa, faz o caminho oposto: tira o colesterol das células e o leva de volta para o fígado.
O colesterol vai de carona porque ele não é solúvel em água, ou seja, não pode pegar ir junto com o plasma sanguíneo como boa parte das substâncias. As lipoproteínas que o carregam são esféricas, gordas e estão mais para um ônibus articulado que um carro: as de densidade mais baixa, chamadas LDL, carregam algo entre 3 e 6 mil moléculas de gordura de uma vez só. As mais densas, chamadas HDL, ficam com apenas algumas centenas.
O HDL e o LDL são duas das lipoproteínas mais famosas do corpo. Eles são taxadas de anjo e demônio nos programas matinais de saúde e em campanhas de prevenção a problemas cardíacos. O motivo é simples: toda a gordura que o HDL tira do sangue, o LDL põe lá de volta.
É como se uma empresa de ônibus sem noção estivesse despejando passageiros roliços sem dó nem piedade em um terminal de transferência, e outra viação, menor, não tivesse veículos suficientes para tirar todo mundo dali e levar para outro lugar. Uma hora, a quantidade de passageiros aumenta tanto que a multidão trava as escadas e ninguém mais consegue andar. A artéria entope, causando um infarto do miocárdio (se acontece no coração) ou um AVC (se acontece no cérebro).
Os mutantes
O LDL é, portanto, um inimigo do corpo em grandes concentrações. O HDL, por outro lado, ajuda nosso sistema circulatório. Acontece que o LDL pode passar por processos como oxidação ou lipólise e sair transformado em uma versão ainda mais maligna, eletronegativa, já mencionada lá em cima. Ela é chamada de LDL- (assim mesmo, com o sinal de “menos”).
Nosso sistema imunológico sabe que o LDL é do mal, então, quando ele percebe que sua concentração no sangue está alta, ele envia células chamadas macrófagos para dar um jeito na situação. O macrófago não tem frescura e fagocita o LDL ruim. Se ele comer um versão eletronegativa da proteína, porém, não sairá incólume: o LDL- é digno dos piores violões, e irá destruí-lo por dentro, transformando-o em uma aberração chamada “célula espumosa”. Ele morre, se desintegra e seus fragmentos grudam na placa de gordura que está se formando nas paredes das artérias, aumentando sua espessura. Ou seja: o corpo do encanador ajuda a entupir o cano.
A equipe da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da USP sabia que o LDL- era um vilão ardiloso, e criou um tipo especial de anticorpo para encontrá-lo na corrente sanguínea — algo essencial, já que exames tradicionais não conseguem identificá-lo. Deu certo: o anticorpo grudou no LDL-. E aí veio o problema.
“Quando o anticorpo completo está ligado à LDL eletronegativa, eles formam o que chamamos de imunocomplexo”, explica a pesquisadora. “Nesse imunocomplexo, uma porção específica do anticorpo, chamada Fc, está exposta e acaba sendo reconhecida pelos macrófagos.” Em outras palavras, o macrófago engole o LDL do mesmo jeito, e o anticorpo não passa de um agradável tempero para o almoço.
A solução dos pesquisadores brasileiros foi tirar a parte “identificável” do anticorpo, ou seja, tirar a parte que o torna apetitoso para o macrófago faminto. Essa versão reduzida é chamada de scFv. O scFv é muito mais frágil que um anticorpo normal e circula menos tempo na sangue, o que diminui sua eficiência.
“O scFv é muito menos do que o anticorpo completo e por isso acaba circulando por menos tempo no sangue”, explica Abdalla. “Daí surgiu a ideia de conjugar esse fragmento do anticorpo, o scFv, a
nanocápsulas (que na verdade são um tipo de nanopartícula)”. Dessa forma, Abdalla impediu que o macrófago engolisse o anticorpo e, em uma tacada só, ainda aumentou o tempo que ele passa na circulação. Anticorpos blindados na linha de frente contra o colesterol.
Fonte:
Revista Galileu